2006/06/22

Verão I

Começou ontem e só me lembrei dele quando já era hoje. Talvez porque os meus verões têm sido iguais ao resto do ano, de há uns anos para cá. Sem histórias para contar, momentos gloriosos para recordar, sem fotos de paixões guardadas em caixas de recordações.

O que guardo do Verão são ainda as memórias da infância, de amoras colhidas no campo e enfiadas em palhinhas, à laia de chupa-chupa. De banhos na ribeira. De pés enfiados na água fresca do poço que corria nos regos da horta. De tardes na eira a debulhar feijão e milho.

Do pavor que sentia quando via a prima ou a avó com um molho de couves debaixo do braço, para fazer caldo verde, que me enfiavam à força pela boca abaixo, segurando-me o nariz entre dois dedos para que a abrisse. E ainda hoje os farrapos de couve me fazem cócegas na garganta.

Do atalho até à vila, atravessando a ribeira a saltar sobre pedras estrategicamente colocadas a fazer de caminho.

Do cheiro a massa de bolo da prima Maria Amélia, das escadas intermináveis até à casa desta, que a meio tinham uma porta para um irresistível parque de diversões formado por um armazém de esponjas.

Dos anéis feitos na bigorna a partir de cravos*, oferecidos pelo latoeiro da terra aos meninos da cidade. Do fascínio pela música da chapa quando abanada.

E também da fabulosa cozinha escondida por um alçapão na casa de outra prima, nas traseiras da igreja, que parecia tirada de um livro de aventuras. E que ainda deve existir.

Do medo que tinha que os chinelos de enfiar no dedo me dividissem o pé a meio de tão íngreme que era a descida. De que ainda não me libertei.

Das tardes na piscina inventada por uma represa na zona mais larga da ribeira. Dos caminhos e hortas que se tinham que atravessar até lá para encurtar o caminho.

Era tudo tão simples e tão puro. Não se dependia de amores, paixões, dinheiro, datas, agências de viagens, quarto single ou quarto duplo. Era apenas o Verão, fora da cidade. Que agora, aparentemente, já não nos chega.

Foto daqui
*Pregos usados para ferrar os cavalos

2 comentários:

Anónimo disse...

O Verão aqui tem mais tons que no Bic Laranja. Cumpts.
[Os enlevos sempre têm demasiado condimento de entusiasmo: por isso sossegue, que os arroubos são por sua natureza fátuos.]

the dreamer disse...

Maravilhoso esse mundo para o qual nos transportas com as tuas palavras.