Verão I

O que guardo do Verão são ainda as memórias da infância, de amoras colhidas no campo e enfiadas em palhinhas, à laia de chupa-chupa. De banhos na ribeira. De pés enfiados na água fresca do poço que corria nos regos da horta. De tardes na eira a debulhar feijão e milho.
Do pavor que sentia quando via a prima ou a avó com um molho de couves debaixo do braço, para fazer caldo verde, que me enfiavam à força pela boca abaixo, segurando-me o nariz entre dois dedos para que a abrisse. E ainda hoje os farrapos de couve me fazem cócegas na garganta.
Do atalho até à vila, atravessando a ribeira a saltar sobre pedras estrategicamente colocadas a fazer de caminho.
Do cheiro a massa de bolo da prima Maria Amélia, das escadas intermináveis até à casa desta, que a meio tinham uma porta para um irresistível parque de diversões formado por um armazém de esponjas.
Dos anéis feitos na bigorna a partir de cravos*, oferecidos pelo latoeiro da terra aos meninos da cidade. Do fascínio pela música da chapa quando abanada.
E também da fabulosa cozinha escondida por um alçapão na casa de outra prima, nas traseiras da igreja, que parecia tirada de um livro de aventuras. E que ainda deve existir.
Do medo que tinha que os chinelos de enfiar no dedo me dividissem o pé a meio de tão íngreme que era a descida. De que ainda não me libertei.
Das tardes na piscina inventada por uma represa na zona mais larga da ribeira. Dos caminhos e hortas que se tinham que atravessar até lá para encurtar o caminho.
Era tudo tão simples e tão puro. Não se dependia de amores, paixões, dinheiro, datas, agências de viagens, quarto single ou quarto duplo. Era apenas o Verão, fora da cidade. Que agora, aparentemente, já não nos chega.
2 comentários:
O Verão aqui tem mais tons que no Bic Laranja. Cumpts.
[Os enlevos sempre têm demasiado condimento de entusiasmo: por isso sossegue, que os arroubos são por sua natureza fátuos.]
Maravilhoso esse mundo para o qual nos transportas com as tuas palavras.
Enviar um comentário