2006/03/21

“Rio-Lisboa, rio-Lisboa”

Pintem-me o cabelo de branco de algodão. Apanhem-mo atrás num carrapito feito de uma trança quase impecável, não fossem os eternamente rebeldes cabelitos espetados. À frente, uma franja perene de cabelo de bebé, que encaracola também, para desespero de qualquer cabeleireiro (e meu). E ei-la, a minha bisavó,a ti Encaracolada. Chega a ser assustador, olhar-me ao espelho e vê-la, tal e qual eu, a olhar para mim no meu reflexo.

Gertrudes foi lavadeira de Caneças, de trouxa de roupa à cabeça Calçada de Carriche acima. A pé, que os eléctricos partiam do Lumiar. “Rio-Lisboa, rio-Lisboa”, dizia o meu bisavô, pois quem a queria ver era na sua lida fora de portas. Mais tarde, foi caseira numa quinta para os lados de Sintra, e de vez em quando, ia de carroça com as netas vender cebolas a Cascais.

Quando me lembro de a conhecer, já não trabalhava, vivia em casa da minha avó e, sempre que era preciso, tomava conta de mim ou do meu irmão. Sempre que ia a Lisboa (que era, na altura, coisa digna de roupa domingueira), lá trazia da cidade uma guloseima para os netos e, quando podia, lá me costurava um vestido de bonecas.

Inteligente, aprendeu a ler sozinha para poder consultar no jornal a necrologia, não fosse ter chegado a hora de alguma amiga ou cliente. Esperta, determinada, inconformável, incansável, tanto que se poderia dizer acerca dela. No seu último ano de vida, passou uma temporada em casa dos meus pais e, apesar de isso implicar termos de partilhar o quarto, era-me indiferente. Aquela era a avó das avós e, acima de tudo, aquela era outra de mim.

Apesar de ter traços do meu pai, e algumas parecenças com a minha mãe, é com a minha bisavó Gertrudes que me pareço no geral, duas gerações depois. Há dias, voltei a vê-la no espelho, num dia em que apanhei o cabelo. Lá estavam os caracóis rebeldes, os olhos pequenos e vivos e a expressão de que me lembro tão bem. E estão também o “rio-Lisboa, rio-Lisboa”, a vontade de aprender, a determinação, o inconformismo e a minha relação com as minhas sobrinhas, que é feita dos mesmos gestos que ela tinha comigo.

2 comentários:

Uxka disse...

As avós são assim, não são?...Uma espécie de mães sem os defeitos destas, uma espécie de super-mulheres capazes de tudos e que nos permitiam (quase) tudo. Tenho saudades das minhas.

Hipatia disse...

Conheci um bisavô e uma bisavó, mas por tão pouco tempo que guardo parcas memórias. Sei no entanto as histórias. E sei também que os caracóis do meu cabelo foram herdados desse bisavô :)

História linda, Rosmaninho!

E obrigada pelos parabéns.