2005/10/17

O beijo

Era a primeira vez que se viam. Conheceram-se num chat e tinham começado a amar as palavras um do outro, sem que nunca se tivessem visto ou ouvido. Milhares de palavras passaram por aquela janela, um confessionário dos sentimentos mais profundos que viviam, dia a dia, partilhados noite após noite na solidão que cada um preservava com empenho.
Ela era transparente, revelava-se toda sem reticências em cada ponto, cada vírgula, cada expressão de cada vez maior entrega àquele companheiro das suas noites. Ele, por outro lado, escondia-se atrás de uma máscara de dor por ele criada, uma barreira que ele queria que fosse impossível de ultrapassar.
Ao longo do Verão, ela foi-se entregando àquele ser, talvez real, talvez não, que surgia do nada quase todas as noites, andando às voltas em torno de uma relação que umas vezes parecia possível, outras menos. E ele entregava-se também, para fugir logo no dia seguinte.
E agora, frente a frente, descobriam finalmente quem era a pessoa do outro lado, a imagem verdadeira daquele ser que tinham vindo a imaginar. Ela, igual ao que tinha descrito, talvez um pouco mais magra do que ele imaginava; ele, completamente diferente da visão que ela tinha criado daquele seu grande amor – mais baixo, parecendo mais novo que a idade que tinha.
Sem o escudo protector de um ecrã e um teclado, ficaram sem palavras, eles que as respiravam. E sentiram que ali, ao vivo, não conseguiriam manter viva aquela relação. Tinham quebrado o laço criado pela imaginação. Restava-lhes despedirem-se, porque a partir dali já não conseguiriam ser os mesmos, já não falariam num sonho mas sim numa realidade que não queriam ver.
Olhou-o nos olhos, uma última vez, e sem que ele pudesse fazer nada, beijou-o como tantas vezes tinha imaginado fazê-lo. Um primeiro e último beijo, para fechar o ciclo da sua redescoberta.
Pediu-lhe para esperar, tirou uma folha de papel da mala e escreveu qualquer coisa, que lhe entregou depois de dobrar. Ele abriu o recado e leu a mensagem, como sempre tinha lido as palavras dela. “Adeus, meu amor.”

1 comentário:

Uxka disse...

Mais cego é aquele que não quer ver, não sabe o que perde.
Beijo 'miga.